segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Paris, quero voltar a ver Paris

 
Desta vez, esta noite que pas­sou, não foi como da pri­meira vez que vi Paris: esta noite tinha os olhos rasos de raiva. A guerra dói, a guerra mata, mas isto não é guerra, isto é o “silence of the lambs”, a mor­tan­dade dos ino­cen­tes, o assas­sí­nio do quo­ti­di­ano inde­feso. Quando se está em guerra, sabe-se que se está em guerra, mesmo quando se toma o pequeno almoço. Eu já tomei o pequeno almoço sabendo que estava em guerra. Mais pró­xima ou mais lon­gín­qua, mas estava em guerra. Em Paris, quem can­tava e dan­çava no Bata­clan, quem jan­tava no Le Petit Cam­bodge, não sabia que estava em guerra, pela sim­ples razão de saber que não estava em guerra. O que qui­se­ram matar, na mais de uma cen­tena de mor­tos da noite de 13 de Novem­bro, em Paris, é a nossa forma de viver, a nossa forma de dan­çar, a nossa forma de comer e  foder.
 
Matam Paris para nos matar a todos, para matar o cora­ção que há den­tro de nós. Matam Paris para nos matar de medo.É obri­ga­ção de cada um de nós, dos que que­re­mos ser livres na comida e na bebida, na con­tem­pla­ção sem reser­vas do homem e da mulher nus, na cele­bra­ção do amor exaltado e tór­rido que é o amor do Oci­dente, fazer­mos viver Paris em nós.
Recordo, e é a peque­nina e sim­bó­lica home­na­gem que agora me ocorre, a pri­meira vez que vi Paris.
 
A pri­meira vez que vi Paris: olhos rasos de água, claro. Tinha aca­bado de tirar os olhos de Lis­boa e come­çava a ver o que na vida tinha para con­quis­tar.
O avião sobre­voou a cidade e vi, lá de cima, o Sena, aper­tado à esquerda e à direita, como vi a Torre Eifel a levantar-se, com esta­tura car­te­si­ana, uma espé­cie de “cogito” urbano como não há em mais lado nenhum, a não ser em Nova Ior­que onde os fran­ce­ses plan­ta­ram, como “ersatz”, a Está­tua da Liber­dade.
Sei bem que a França não está na moda. Na moda tem estado, e julgo que ainda está, dizer que os fran­ce­ses são arro­gan­tes e os pari­si­en­ses insu­por­tá­veis. Mas nesse dia, em que pela pri­meira vez vi Paris com olhar cân­dido e souci de con­nais­sance, encon­trei o meu par.
A minha França come­çara, quase por acaso, quando (terá sido em 1962?) o meu pai trouxe, do porto de Luanda, uns dis­cos aban­do­na­dos, 45 rpm, de Jean Fer­rat, um cro­o­ner (ou um poeta-autor?) que me fez ouvir a estra­nha música de uma das mais belas lín­guas que conheço. Depois, um bom bocado depois, sozi­nho ou com aju­das, peguei de frente e de cer­ne­lha, os poe­tas, de Rim­baud a Élu­ard, de Bau­de­laire a René Char.
Antes, a França já me tinha sido passe-partout para atra­ves­sar a ale­gre tris­teza da ado­les­cên­cia. Foi o meu yé-yé, com o Michel Pol­na­reff da pou­pée qui fait non, foi o meu sonho do baile de sábado à noite em que Syl­vie Var­tan era la plus belle pour aller dan­ser. Eu, que vivia em África, deli­rava com o Tour de France em que Jac­ques Anque­til inva­ri­a­vel­mente esma­gava Ray­mond Pou­li­dor (o mais injus­ti­çado dos ciclis­tas).
A pri­meira vez que vi Paris, deixei-me ficar. Tinha um quarto esconso, no último andar  de um qual­quer número da Rue du Bac, em pleno 6eme, entre a rue de Gre­nelle e o bou­le­vard Saint Ger­main. Mar­gem esquerda, a que me ficou no cora­ção, mas a que hoje, apren­dida a lição de Truf­faut, sou infi­de­lís­simo. Des­co­bri, da Opéra à Made­leine, de Pigalle a Mont­mar­tre, a sen­su­a­li­dade mar­gi­nal da direita, a que me entrego com volú­pia bau­de­lai­ri­ana.
Não sei se a França de que con­ti­nuo a gos­tar, por tanto a ter antes amado, ainda existe. Era, essa França  de que pri­meiro gos­tei, a mesma França com que Hollywood sonhou quando fez “An Ame­ri­can in Paris” ou “The Last Time I Saw Paris”. Ele­gante, gene­rosa e cos­mo­po­lita. Lumi­nosa e vã. Tenho a vai­dade de pen­sar que lhe devo a minha edu­ca­ção sentimental.
 
Fonte: Site: Escrever é triste
Postado por:     Manuel S. Fonseca
 

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