Desta vez, esta noite que passou, não foi como da primeira vez que vi Paris: esta noite tinha os olhos rasos de raiva. A guerra dói, a guerra mata, mas isto não é guerra, isto é o “silence of the lambs”, a mortandade dos inocentes, o assassínio do quotidiano indefeso. Quando se está em guerra, sabe-se que se está em guerra, mesmo quando se toma o pequeno almoço. Eu já tomei o pequeno almoço sabendo que estava em guerra. Mais próxima ou mais longínqua, mas estava em guerra. Em Paris, quem cantava e dançava no Bataclan, quem jantava no Le Petit Cambodge, não sabia que estava em guerra, pela simples razão de saber que não estava em guerra. O que quiseram matar, na mais de uma centena de mortos da noite de 13 de Novembro, em Paris, é a nossa forma de viver, a nossa forma de dançar, a nossa forma de comer e foder.
Matam Paris para nos matar a todos, para matar o coração que há dentro de nós. Matam Paris para nos matar de medo.É obrigação de cada um de nós, dos que queremos ser livres na comida e na bebida, na contemplação sem reservas do homem e da mulher nus, na celebração do amor exaltado e tórrido que é o amor do Ocidente, fazermos viver Paris em nós.
Recordo, e é a pequenina e simbólica homenagem que agora me ocorre, a primeira vez que vi Paris.
A primeira vez que vi Paris: olhos rasos de água, claro. Tinha acabado de tirar os olhos de Lisboa e começava a ver o que na vida tinha para conquistar.
O avião sobrevoou a cidade e vi, lá de cima, o Sena, apertado à esquerda e à direita, como vi a Torre Eifel a levantar-se, com estatura cartesiana, uma espécie de “cogito” urbano como não há em mais lado nenhum, a não ser em Nova Iorque onde os franceses plantaram, como “ersatz”, a Estátua da Liberdade.
O avião sobrevoou a cidade e vi, lá de cima, o Sena, apertado à esquerda e à direita, como vi a Torre Eifel a levantar-se, com estatura cartesiana, uma espécie de “cogito” urbano como não há em mais lado nenhum, a não ser em Nova Iorque onde os franceses plantaram, como “ersatz”, a Estátua da Liberdade.
Sei bem que a França não está na moda. Na moda tem estado, e julgo que ainda está, dizer que os franceses são arrogantes e os parisienses insuportáveis. Mas nesse dia, em que pela primeira vez vi Paris com olhar cândido e souci de connaissance, encontrei o meu par.
A minha França começara, quase por acaso, quando (terá sido em 1962?) o meu pai trouxe, do porto de Luanda, uns discos abandonados, 45 rpm, de Jean Ferrat, um crooner (ou um poeta-autor?) que me fez ouvir a estranha música de uma das mais belas línguas que conheço. Depois, um bom bocado depois, sozinho ou com ajudas, peguei de frente e de cernelha, os poetas, de Rimbaud a Éluard, de Baudelaire a René Char.
Antes, a França já me tinha sido passe-partout para atravessar a alegre tristeza da adolescência. Foi o meu yé-yé, com o Michel Polnareff da poupée qui fait non, foi o meu sonho do baile de sábado à noite em que Sylvie Vartan era la plus belle pour aller danser. Eu, que vivia em África, delirava com o Tour de France em que Jacques Anquetil invariavelmente esmagava Raymond Poulidor (o mais injustiçado dos ciclistas).
A primeira vez que vi Paris, deixei-me ficar. Tinha um quarto esconso, no último andar de um qualquer número da Rue du Bac, em pleno 6eme, entre a rue de Grenelle e o boulevard Saint Germain. Margem esquerda, a que me ficou no coração, mas a que hoje, aprendida a lição de Truffaut, sou infidelíssimo. Descobri, da Opéra à Madeleine, de Pigalle a Montmartre, a sensualidade marginal da direita, a que me entrego com volúpia baudelairiana.
Não sei se a França de que continuo a gostar, por tanto a ter antes amado, ainda existe. Era, essa França de que primeiro gostei, a mesma França com que Hollywood sonhou quando fez “An American in Paris” ou “The Last Time I Saw Paris”. Elegante, generosa e cosmopolita. Luminosa e vã. Tenho a vaidade de pensar que lhe devo a minha educação sentimental.
Fonte: Site: Escrever é triste
Postado por: Manuel S. Fonseca
Nenhum comentário:
Postar um comentário